domingo, 20 de fevereiro de 2011

Quem te deu licença de morrer?

 
É este o título da crónica de António Lobo Antunes na Visão.
Por vezes agressivo, outras de uma doçura desconcertante Lobo Antunes continua a escrever como ninguém: brilhantemente!
Eis a crónica do meu escritor predileto.

Quem te deu licença de morrer?

Soube ontem que o Pontinha morreu em agosto. Era pobre demais para que alguém se interessasse por ele, falasse dele. Vivia na franja da miséria, com uma reforma ridícula, que tentava melhorar engraxando sapatos, aos domingos, no Campo Grande. Nunca o vi maldisposto, nunca o ouvi queixar-se. Aceitava. Foi ordenança da messe de oficiais em Marimba, cortava-me a comida em bocadinhos de dois por três centímetros, que eu conferia com uma fita métrica, no pretexto do tamanho da minha goela. Um milímetro a mais e soltava um berro
- Pontinha
mostrando-lhe, de dedo apontado, que não cabia. O Pontinha levava aquilo para dentro e procedia a novas medições. No encontro anual da Companhia fazia questão de me preparar o almoço, às vezes mandava-o sentar-se ao meu lado e o Pontinha, impante, designando os outros soldados
- Mijam-se todos de inveja de eu estar aqui à sua beira
a triunfar, radiante de júbilo, torto, feio, feliz. Não usava arma, trazia um pano sujo pendurado do ombro. A higiene não era o forte dele mas, na desgraça em que vivíamos, quem se ralava com isso? Várias vezes lhe ordenei
- Tira o polegar da minha sopa
O Pontinha tirava, chupava-o, perguntava-me
- Já está limpo, não está?
e, sem dar por isso, metia-o lá dentro outra vez. No meio daquela água chilra distinguia-lhe o cuspo, e engolia o polegar, água morna e alguns feijões. À tarde, se estava no aquartelamento, pedia-lhe chá e torradas, mais duras que os meus dentes, com uma leve sombra de manteiga em cima. Quanto ao chá sabia, em partes iguais, a borras de café e a Pontinha. O Pontinha era atirador, mas como a sua coragem se mostrava um bocado vacilante passou para a messe, um casinhoto horrível, diante do pau da bandeira e das trovoadas. O segundo comandante, de quem eu gostava
- Porque é que vocês têm aqui esta coisa?
fitando o Pontinha num desgosto à beira das lágrimas, e no entanto mantivemo-lo firme, com a sua sujidade e os seus dentes mal plantados, porque o Pontinha era tão mau que se tornava esplêndido e dava um vago colorido às nossas tristes existências. Acho que acabámos por ter uma certa ternura por ele
(que palavra tão esquisita na guerra, ternura)
e nos comovia o seu desamparo. Se calhar ele também tinha uma certa ternura por nós e comovia-o o nosso desamparo. Epidemias de cólera, solidão, saudades. Só o Pontinha se me afigurava contente no meio dos seus tachos em desordem: servir os senhores oficiais, que privilégio. E este agosto morreu. Nos encontros da companhia admitia que a mulher lhe dava porrada:
- E tu?
o Pontinha, convicto
- Lá lhe vou batendo também
mas menos que ela, mais desembaraçada no bofetão. Não parecia sofrer com essas lutas, orgulhava-se sinceramente da ferocidade da esposa:
- Não é para graças
exultava ele
- Não é para graças
orgulhoso da sua padeira de Aljubarrota, que lhe ficava com o dinheiro porque o Pontinha sofria de inclinações para o tinto. Na última ocasião não veio, alguém comentou vagamente
- Parece que não está muito bem
e não sei quê nos ossos enfiou-o numa caixa. Agora já não lhe batem, nem dá banho ao polegar em nenhuma sopa. Porque é que a sua morte me entristece? Por ele, claro, mas por mim também. Por ele, dado que o Pontinha apreciava viver, mesmo no meio da aflição dos seus dias. Por mim, pelo facto de o meu mundo se ir despovoando. Não me agrada que me roubem o passado, me depenem de recordações, memórias, torradas, panos sujos. Apetece-me berrar
- Pontinha
e o Pontinha vir a correr, relativamente a correr visto que a pressa não fazia parte das suas características, suspender-se no limiar com o pano sujo, interrogar
- É o lanchinho senhor doutor?
(não me tratava pelo posto, tratava-me por
- Senhor doutor)
e proceder, num imenso chinfrim de metais, à confeção das suas fatias de granito. Apetece-me inquirir
- Enfiaste o dedo na caneca do chá?
escutar de volta
- Quer que prove a ver se tem bastante açúcar?
Uivar-lhe
- Não
com o Pontinha já a sorver um golo, chamar-lhe
- Seu cabrão
e no fundo achar graça a tanto desvelo maternal, tanto cuidado. Há anos anunciou-me
- Você precisa é que vá para sua casa tomar conta de si
e quase estive de acordo com ele. Insistiu
- Não quer que vá para sua casa tomar conta de si?
por uma unha negra não disse
- Quero
e de novo as mangueiras de Marimba, tão lindas, entre a Administração e o posto médico, e de novo a comida cortada em dois por três centímetros, e de novo as imensas noites de Angola na estreiteza de Lisboa. E de novo nós com vinte anos e de novo estrelas desconhecidas, sem fim, a garantirem-nos que éramos eternos, que seríamos eternos eternamente. Alguns cadáveres à nossa volta, claro, mas a gente eternos. Foste-te com uma coisa nos ossos, imagine-se. Com que direito? Se caíres na asneira de me aparecer à frente torno a chamar-te
- Seu cabrão
já que, vendo bem as coisas, não era má ideia estares em minha casa a tomar conta de mim.
- Se eu tomasse conta de você o senhor doutor andava aí como uma rosa
e palavra que me dava jeito andar aí como uma rosa, as pessoas
- Anda aí como uma rosa
e eu
- É que tenho o Pontinha comigo
para os que não possuem a sorte de ter o Pontinha com eles, nem de exigirem
- Dois por três centímetros, Pontinha, nem mais um milímetro
e o Pontinha, de fita métrica, a conferir o rosbife.
 

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