sábado, 12 de setembro de 2009

O Melhor da Semana 37

O melhor Post desta semana é este. E, seguramente, é também o melhor de muitas semanas anteriores tal como de muitas semanas futuras.
Há textos que valem por um milhão de imagens.
Este é um desses!
Não vou fazer mais comentários para não empobrecer o post homenageado.
Ei-lo:


FIDÉLIA
Os olhos são de um azul profundo como a água gelada das praias do Norte, o cabelo, preto como as rochas em noite de lua nova, as mãos finas e compridas como se fora a fiandeira de um rei tecendo mantos de ouro e prata, o corpo magro, longo e flexível como as algas.
Sempre falou pouco, como se as palavras fossem desnecessárias, porque os olhos dizem e explicam tudo e quando porventura dizia alguma coisa as pessoas assustavam-se, tão desabituadas estavam da sua voz.
Os pais inquietavam-se com esta estranha filha, mas sabiam que ela era feliz desenhando estranhos seres como ela, flores inexistentes e igualmente estranhas, mundos de água e mar, sempre a preto.
Todos os anos em Setembro, os pais levavam a filha para o campo, para respirar outros ares e quem sabe, desenhar outros seres.
Fidélia entristecia, sentia saudades do cheiro a maresia, não gostava do calor e sufocava na casa enorme e vazia.
À tardinha trepava montes acima, o bloco e o lápis Ivory Black fechado na mão, procurava os locais mais escarpados e isolados, onde apenas os pastores e as cabras se aventuravam e aí gostava de ficar.
Um dia encontrou Mateus, pastor de cabras, tocador de flauta, cabelos cor de milho, olhos de espigas verdes e coração manso como um cordeiro.
E Fidélia falou e Mateus assobiou.
E Mateus aprendeu a desenhar e Fidélia a tocar.
Ela ofereceu-lhe um lápis preto, ele fez-lhe uma flauta de cana.
Tinham quinze anos e o monte era alto.
Num entardecer de tempestade, um homem seguiu Fidélia pelo monte acima e soprou-lhe palavras da noite aos ouvidos e ousou agarrá-la e tocar-lhe no rosto e ela viu o gume brilhante de uma faca escondida na mão, teve muito medo e gritou:
-Mateus!
Num pulo de lobo Mateus saltou, os cabelos cor de milho maduro voando com ele e num instante em que o mundo parou de girar, o coração ruim do homem da navalha foi mortalmente atingido pelo lápis preto, onde ainda se podia ler Ivory Black.
Fidélia gostava dos lápis bem afiados.
Mateus foi condenado e Fidélia disse, antes de novamente se calar:
-Espero por ti quinze anos e outros tantos esperaria! Mas quem é que pode prender o vento ou conter a água de um rio, sem que o vento morra e o rio seque?
E passados quinze meses Mateus fugiu da prisão e escondeu-se nos montes e toda a aldeia o ajudou.
Ele trocava comida por trabalho, tocava a sua flauta nos casamentos e nas festas e os amigos e vizinhos fizeram um pacto de silêncio, porque ele era um homem bom e tinha o coração manso como um cordeiro.
Fidélia encontrava-o nas escarpas e Mateus encontrava-a na casa do campo.
Tinham trinta anos e o monte era alto.
Quis o destino, a sorte ou o azar e Mateus foi descoberto por um polícia mais zeloso, daqueles que gosta de cumprir a lei, mesmo que ela não seja justa.
Os amigos, os vizinhos e até o padre diziam:
-Não prendam um homem bom, porque ele está bem junto de nós, já cumpriu a sua pena!
Fidélia, o corpo dorido como alga quebrada, disse-lhe:
- Espero por ti quinze anos e outros tantos esperaria! Mas quem é que pode prender o vento ou conter a água de um rio, sem que o vento morra e o rio seque?
Tinham quarenta e cinco anos e o monte era alto.
(...)
Esta é uma página afiada, como um lápis ou uma navalha e onde se conta que a vida tem muitas histórias e algumas podem ser verdadeiras.
-
Manuela Baptista
Estoril, 6 de Setembro 2009

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