domingo, 22 de maio de 2011

Crónica de afetos

  
Publicou a revista Visão no passado dia 12 uma crónica de António Lobo Antunes intitulada Cartilha maternal.
É - tal como quase tudo o que escreve - sublime!
Com a devida vénia - ao escritor e à revista - aqui a transcrevo.

Cartilha maternal

A minha mãe tem noventa e três anos, está cega, está surda, é um farrapinho que o menor sopro leva e, no entanto, lembra-se do peso com que os seis filhos nasceram, das peripécias de cada parto, dos primeiros dentes, do momento em que começaram a falar, a andar, a tudo o resto, doenças, operações ao apêndice, gracinhas, e dá-me ideia que os considera, ainda hoje, como as crianças que foram, mascaradas de adultos. Ontem, ao despedir-me dela, beijei-a e a reação foi
- Isso é maneira de se dar um beijo?
seguida de
- Um beijo como deve ser, se fazes favor
e lá lhe pus, na bochecha, um beijo como deve ser. E tinha razão porque me limitara a roçar-lhe a testa com a boca. Várias vezes a ouvi perguntar aos meus irmãos
- Não sabes dar um beijo como deve ser?
de pé, minúscula, mirando as sombras que agora somos para ela e que, mesmo assim, consegue avaliar
- Estás mais gordo, estás mais magro
com uma exactidão infalível. Passa connosco os jantares de quinta-feira em silêncio, o Pedro grita-lhe na orelha as poucas coisas que lhe dizemos, vive, sem uma queixa, numa solidão absoluta
- O que é que faz o dia todo?
- Penso
às voltas com recordações, memórias. Uma ocasião, ainda o meu pai estava vivo, sentiu-se mal. Formaram-se duas brigadas de filhos, metade permaneceu em casa a acompanhar o meu pai, a outra metade partiu com ela para a Cuf. Sem uma queixa, exigiu, antes de partir, subir ao primeiro andar para se pôr mais bonita: maquilhou-se melhor, penteou-se melhor, apareceu com uma écharpe, um broche e um sorriso
- Até logo ou até ao outro mundo
e, por acaso, foi até logo. Isto sem alarme, sem pânico, sem patetismo algum: absolutamente tranquila:
- Até logo ou até ao outro mundo
e que lição de dignidade vinda de uma pessoa que diz ter muito medo da morte. Eu sou o mais velho e, ao nascer, quase a matava de uma eclampsia. Depois de me tirarem a ferros quem ia indo desta para melhor era eu, porque toda a gente, ocupada com a moribunda, se esqueceu de mim. Segundo a lenda familiar foi uma tia velha, uma das primeiras senhoras a matricularem-se em Medicina, quem me descobriu sem respirar. E, não me lembro como, porque a memória dos meus primeiros minutos, ignoro porquê, não é lá muito boa, conseguiram reanimar o crianço. Mas antes disso, quando transportavam a minha mãe para a sala de partos, já com visão dupla e os outros sintomas todos, conta ela que a maca passou pelo meu pai, encostado à parede do corredor. A minha mãe
- Eu não te disse que ia morrer?
E o meu pai não encontrou melhor resposta do que
- E o que é que queres que eu faça?
e até ao dia de hoje ela não esqueceu esta frase. Ao falar nisto, muito mais tarde, o meu pai continuava sem lhe entender a indignação
- E o que é que tu querias que eu fizesse, realmente?
como se continuasse, encostado à parede, a ver passar a mulher moribunda. Aliás a doença e a morte são assuntos a que nos referimos pouco entre nós, o pudor sempre nos impediu a expressão, em voz alta, dos sentimentos mais íntimos, e gostamos uns dos outros sem falar nisso. Sofre-se calado e acompanha-se o sofrimento calado. Em regra tampouco se cumprimenta um de nós pelos seus sucessos ou se critica o que não gostamos: uma espécie de princípio de vasos comunicantes silenciosos chega. Quando de um problema de saúde na tribu, em lugar de soprar fosse o que fosse ao meu irmão que o teve ofereci-lhe um pião e o respectivo cordel, um pião igual àqueles que deitávamos em criança, de pau e com um prego a fazer de bico. Não se calcula a quantidade de emoções que um pião sabe explicar, ou como um pião é capaz de resumir os numerosíssimos afectos de uma vida inteira. O meu irmão percebeu. Eu sabia.
E chega.
Tenho estado para aqui a escrever sobre a minha mãe e, se calhar, parece que gosto muito dela: não é verdade. A nossa relação é demasiado complexa, como qualquer relação verdadeira, mas não vou, evidentemente, falar disso. E a relação de um homem com os pais foi sempre um assunto penoso, cheio de julgamentos implacáveis, muitas vezes injustos, muitas vezes cruéis, olhando-se mutuamente num rancor de acusados. Quando um amigo de Freud lhe perguntou como educar o filho, Freud respondeu
- Faças o que fizeres será mal feito
e eis uma verdade do tamanho do mundo, pela qual os pais e os filhos pagam um preço demasiado grande. Um preço insuportável. Não merece a pena andar com paninhos quentes dado que não se pode escapar disto. Recordo-me de uma senhora para o marido
- Gostas de mim, Zé?
e do marido
- Isso são coisas a que não se pode responder de ânimo leve
que me dá ideia, embora o senhor, na cabeça dele, estivesse a brincar, que me dá ideia de ser a única resposta honesta possível. A frase
- Isso são coisas a que não se pode responder de ânimo leve
gira-me há anos e anos, na cabeça, a mim que pertenço à classe dos eternos culpabilizados e questiono sempre tudo. Não me apetece insistir nesta matéria. Primeiro porque dói, segundo porque ninguém tem nada a ver com isso e terceiro porque não se deve pôr um coração debaixo de cada palavra. Os livros que escrevi, o livro que escrevo agora, os livros que, se tiver tempo, escreverei, falam o suficiente de vocês e de mim. A nossa sede de amor é inextinguível. Mas não vou passear pela rua de caneca na mão.

António Lobo Antunes in Visão 12 de Maio de 2011
  

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