sexta-feira, 1 de julho de 2011

Igreja da Misericórdia em Beja - III

  
(continuação)

Nacionalização e secularização

Logo após a implantação da República, em 5 de Outubro de 1910, a Santa Casa sofreu a interferência de correntes políticas de cariz anticlerical e laicizante. Acabou por ser espoliada, em favor do sector público, de parte considerável do seu património plurissecular. A igreja foi cedida, sem muitas resistências da irmandade, à Câmara Municipal. Passou então a servir de arrecadação e de oficina de carpintaria e pintura, o que levaria à dispersão ou mesmo à destruição de parte muito considerável do seu acervo. O processo de degradação agravou-se com a construção, em 1927, de um depósito de água para abastecimento da cidade nas coberturas do edifício, o que causou a compressão vertical dos muros e deu azo a infiltrações fatais para os retábulos e as pinturas parietais.
Movendo influências de diversa ordem, um erudito bejense, o Dr. Diogo de Castro e Brito, respeitado pelo trabalho de salvaguarda do património histórico-artístico, conseguiu promover a classificação da igreja como Monumento Nacional, salvando-a de novos perigos. Ficou também a dever-se muito ao seu esforço que a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais levasse a cabo, em 1941-1946, uma profunda intervenção de restauro, incluindo o desentaipamento das arcadas e outras obras de reintegração estilística, de acordo com as orientações vigentes na época. O resultado, polémico, minimizou o carácter religioso do edifício e a configuração que ele apresentara durante mais de quatro séculos, devolvendo-o quase ao estado original. Para atenuar o choque, seguiram-se novas campanhas de obras em 1951-1956. Fez parte delas a remontagem do altar da capela-mor, que abrangeu, entre peças dos altares da igreja e de outros edifícios, alguns elementos do retábulo da capela do Santíssimo Sacramento da sé de Silves. Outros altares de talha do próprio monumento vieram a ser total ou parcialmente recuperados e instalados na igreja do antigo convento de Santo António, de Beja, por iniciativa do bispo D. José do Patrocínio Dias.
Apontada como vítima do desafecto que o jacobinismo republicano votou aos monumentos religiosos – algo que marcou a memória de várias gerações, mas não se pode generalizar, mesmo em relação a este monumento –, a igreja da Misericórdia converteu-se num símbolo da «regeneração» encarnada pelo Estado Novo. Só muito esporadicamente voltou a servir de local de culto. A galilé, aberta sobre a Praça da República, forum da cidade por excelência, passou a desempenhar funções de espaço cerimonial por ocasião da visita oficial de altos dignitários do regime ou outros actos solenes. Num movimento pendular, após a Revolução de Abril democratizou-se o seu uso ao ponto de se tornar quase banal. O clímax viria, poucos anos mais tarde, com a instalação de um posto de venda de artesanato na capela-mor, em cujas paredes se expõem, para venda, pratos de louça e souvenirs. Um século depois de ter sido arrancado à legítima proprietária, entregue às autoridades concelhias e barbaramente profanado, o monumento aguarda um uso à altura do seu estatuto. Isto não impede que, a par do castelo e do convento da Conceição, seja uma das representações emblemáticas de Beja.

Artigo publicado no jornal Notícias de Beja, nº 4115 de 30/06/2011
 

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