Temos por hábito fazer uma pequena introdução ao post que elegemos como o melhor do mês.
Como nota explicativa do porquê da eleição, como elogio, etc.
Sobre este nada tenho a dizer porque me faltam as palavras.
Febre
Com voz dorida, o menino chama a mãe, que vai correndo e, mal lhe põe a mão na testa, dá-se conta de que ferve. O menino tem os olhos como brasas. A mãe apressa-se a ir buscar à caixa dos remédios os supositórios antipiréticos. Administra-lhe um e, como a febre não amaina, procura o telefone do médico; mas olha o relógio e recorda que antes das dez não dá consulta. Se lhe telefonar para casa, às oito, devido a uma coisa que, seguramente, deve ser só uma gripe, o médico fará má cara. Ligar-lhe-á para o consultório, quando abrir. Faz um quarto de hora que o pai da criatura saiu para o trabalho. Telefonar-lhe-á mais tarde para contar-lhe o sucedido. Entretanto medirá a temperatura ao menino. Vai buscar o termómetro.

Volta a acordar às dez menos um quarto. Um dos raios de sol que lhe chegam entre as ripas da persiana ilumina o despertador. A sua mãe terá ligado já para a escola? Que vergonha, se se esqueceu e o esperaram – todos: professores e alunos – um tempo prudencial, até se decidirem eles a telefonar para sua casa – mas o telefone não tocou, pois não? – e tomar conhecimento de que está doente. Mas não: agasalhado pela febre, vê-os claramente no autocarro, pela auto-estrada, meia hora depois de ter saído da cidade, cantando, rindo, brigando. Vê Victor contando as heroicidades que conta sempre e em que já ninguém acredita. Vê Ivo comendo a merenda antes de tempo; o motorista pedindo silêncio; o professor Santos repetindo, com atitude mais enérgica, as demandas do condutor; Carlos lutando com Inácio; Belmiro e Gabriel troçando do professor Santos. Vê tudo com tanta clareza que, não fosse acrescentarem-se detalhes e variantes que no ano anterior não se produziram, julgaria que a única coisa que faz é recordar a excursão anterior. Mas não: o ano passado ele sentava-se, precisamente, ao lado de Belmiro, e Gabriel sentava-se com Cristóvão, e Inácio não ia e agora, por outro lado, vê-o como se estivesse diante dele. Vê como empurra Carlos pelas costas, e logo dissimula; vê Belmiro – talvez para celebrar ser um dia de festa, ele que habitualmente é tão medroso – juntar-se à batalha; vê como Victor – como sempre, com ar de querer ser quem manda – tenta manter a ordem, sem que ninguém lhe faça caso; vê como o professor Santos volta a cabeça; vê como o motorista se volta também, pedindo silêncio; vê a curva mais à esquerda de onde teria que estar; vê o grito de cinquenta e duas vozes; vê a cara de terror do professor Santos. E ele próprio fecha os olhos, horrorizado, sem tempo de pensar que mais lhe teria valido não dissimular a febre e ter ficado na cama aquela manhã.
Escrito por Rui Herbon in Jugular 21 de Setembro de 2010