sábado, 27 de fevereiro de 2010

O Melhor Post de Fevereiro

Escolhi este. Poderia ter escolhido outro qualquer deste blogue que a escolha não seria menos digna.
A Sorte Protege os Audazes é um blogue que deve ser lido e seguido. Foi através do blogue da RTP sobre a viagem de circum-navegação do Navio Escola Sagres que tive conhecimento deste “Diário de Bordo” fantástico. Pena é que o NRP Sagres não passe aqui por Vladivostok para o visitar. Se me for possível deslocar-me-ei a Tóquio para o ver.

O título do post indica as coordenadas geográficas pelas 23H50 do 19º dia de navegação.

05º 48’.2S 032º 05.1W, dia 19, 23h50.

Acordei cedo, às 5h00. O dia amanheceu devagar, que não sabe da nossa pressa e ânsia e vontade de chegar. Não sabe que o marinheiro Afonso, a quem todos tratam por Wally pelas notórias parecenças físicas e aros pretos dos óculos, pediu licença para se ir casar a Portugal em Setembro, o que motiva já que, qualquer um, quando quer saber dele, pergunte:
- Onde está o Wally?
O dia também não sabe ainda que o segundo marinheiro Manuel Monteiro tem o dom da música e que com o seu violino alegra as noites dos seus camaradas, que de outra forma seriam mais longas. O dia não sabe ainda que o cabo M. Santos vai ser pai daqui a sete meses. O dia amanheceu devagar. À tarde, avistamos golfinhos. Adivinhando a teimosia do mar que não acaba e a indiferença do dia que corre lento, sem se importar com cada uma das histórias que estes homens carregam, os golfinhos aparecem, sem aviso, de ambos os bordos da Sagres. Exibem-se, o que nos faz correr de um bordo ao outro e outra vez para o primeiro, procurando não perder nada. Não há como o trabalho para ir enganando o tempo, que demora a passar. Lá fora, desde a manhã que se continua a trabalhar para que o navio chegue ao Recife sem mácula. Lá dentro, a azáfama não é menor, em especial para o tenente Pinto Ferreira. O Pinto Ferreira é o oficial formado em administração naval, responsável por toda a logística da Sagres. Não há nada que entre no navio que não passe por ele. É ele o garante que a Sagres tenha uma autonomia de trinta dias consecutivos no mar, sem que nada falte a bordo, do combustível à farinha com que se faz o pão. Só o comandante, o imediato e o Oliveira, “seu escola”, usam a prerrogativa de o tratar por “tulha”. Uma rápida consulta ao dicionário diz-nos que “tulha” significa “celeiro”, “montão de cereais ou frutos secos” ou “casa ou compartimento onde se guardam cereais em grão”, e é esta a razão pela qual desde há muitos anos que a sua função ganhou esse nome, o que o Pinto Ferreira aceita com fleuma. O tulha não pára, é um corrupio de faxes e emails a negociar os preços e as condições de toda a sorte de mantimentos que serão embarcados no Recife. Toda a troca de emails e restante documentação fica imediatamente disponível no WISE - acrónimo de Web Information System Environement e, na prática, uma folha de rosto para todo o arquivo vivo do navio, o Facebook interno da Marinha - para o comandante aprovar. Às 14h00, metade da guarnição assiste à palestra sobre a cidade do Recife. Começa o tenente Eusébio, que dá alguns conselhos sobre segurança – andar em grupo, ter uma pequena quantia de dinheiro separada para dar sem oferecer resistência em caso de assalto,… prossegue o Sousa Luís, com indicações úteis sobre a cidade, o que há para ver e fazer. Juntos não demoram mais de dez minutos. Os restantes vinte são dedicados à Medicina do Viajante. O Bruno começa por referir que, nesta zona do globo, são cinco os grupos de doenças que recorrentemente afectam os turistas. As doenças resultantes da ingestão de alimentos ou águas contaminadas como as hepatites A, D e E ou a febre tifóide, que têm a diarreia como primeiro sintoma.
- Com os alimentos é mais difícil. Com a água, tudo é mais fácil: sempre que possível, bebam água engarrafada e evitem pedir gelo nas bebidas – explica.
Prossegue com as doenças transmitidas por vectores animais, designadamente, artrópodes (carraças, pulgas, mosquitos), que podem provocar malária, dengue ou febre amarela e cujos primeiros sintomas são febres altas e prostração.
- Um simples repelente pode fazer a diferença – continua.
Demora-se uns minutos com as doenças transmitidas por contacto pessoal próximo e por contacto sanguíneo ou sexual. Toda a gente presta atenção. Termina com a doença transmitidas por contacto da água com a pele, a Leptospirose.
- É uma bactéria que pode estar em águas estagnadas, fossas ou rios com um caudal pequeno, que coloniza o rim do rato e que faz com que este contamine tudo à sua volta quando urina – diz sem precisar de levantar a voz e continua, mantendo a audiência presa – É de diagnóstico difícil, confunde-se com tudo e fulmina o rim humano.
Às 14h30, a palestra é repetida à outra metade da guarnição. Depois do lanche, o comandante convida-me a sair no semi-rígido para fotografar a Sagres. Mal nos afastamos do navio, voltamos ao fim de muitos dias a vê-lo inteiro, em toda a sua beleza e imponência. Um postal. O céu está limpo, há apenas algumas nuvens para o compor. Vista daqui, do meio do mar, a Sagres deixa de ser uma sucessão de pequenos compartimentos ligados entre si por onde deambulam 147 almas. São quinze minutos aos solavancos sempre a pressionar o botão da máquina. Antes do jantar, há uma nova faina geral de mastros. É a mais dura de todas as que foram feitas até agora.
- Preciso de saber com o que posso contar dos meus homens – dirá o comandante mais tarde.
No fim da faina, o mestre Meireles está visivelmente contente.
- Foi um bom teste, ainda há aspectos a melhorar, mas foi um bom teste – diz o mestre que comandou todas as manobras com os assobios do seu apito.
Jantar. É a vez de o engenheiro Gaspar se apresentar à câmara dos oficiais. Voltam à farda branca que, nem à força do hábito de a ver, me parece bonita. Passamos a refeição a detalhar com graça todos os seus e nossos azares. Primeiro, a osmose, depois os radares, que continuam inoperacionais. O dia passou indiferente a tudo, sem pressa.

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