quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O Post do Mês de SETEMBRO

 
Temos por hábito fazer uma pequena introdução ao post que elegemos como o melhor do mês.
Como nota explicativa do porquê da eleição, como elogio, etc.
Sobre este nada tenho a dizer porque me faltam as palavras.

Febre
Com voz dorida, o menino chama a mãe, que vai correndo e, mal lhe põe a mão na testa, dá-se conta de que ferve. O menino tem os olhos como brasas. A mãe apressa-se a ir buscar à caixa dos remédios os supositórios antipiréticos. Administra-lhe um e, como a febre não amaina, procura o telefone do médico; mas olha o relógio e recorda que antes das dez não dá consulta. Se lhe telefonar para casa, às oito, devido a uma coisa que, seguramente, deve ser só uma gripe, o médico fará má cara. Ligar-lhe-á para o consultório, quando abrir. Faz um quarto de hora que o pai da criatura saiu para o trabalho. Telefonar-lhe-á mais tarde para contar-lhe o sucedido. Entretanto medirá a temperatura ao menino. Vai buscar o termómetro.
Para o menino, a febre não é o mais grave. Adoeceu precisamente no dia em que a escola sai em excursão. Vê as horas – oito e um quarto – e pensa que talvez, com força de vontade, ainda esteja a tempo de conseguir que a febre tenha desaparecido antes das nove, que é quando sairá o autocarro. Mas em seguida vê claramente que, ainda que se pusesse bom em tão pouco tempo, a mãe não o deixaria ir. Com o que lhe custa, sempre que lhe interessa, fingir-se doente para evitar a escola, logo apanhou febre precisamente hoje, quando tinha tanta vontade de ir. Ainda lhe dá mais raiva porque havia feito a mesma excursão no ano passado e por isso sabe que é uma saída estupenda. Recorda ainda, de cabo a rabo, a do ano passado, e a febre ajuda-o a desenhá-la com perfis se não mais precisos, mais brilhantes. Agora a mãe entrou no quarto – não a ouviu até que a tem diante dele: é como se a temperatura lhe polisse os ruídos – e, enquanto lhe põe na testa compressas empapadas de água com vinagre, diz-lhe que telefonará para a escola para que saiam sem esperá-lo inutilmente. O menino está a ponto de pedir-lhe que adie a chamada para o caso de se pôr bom em seguida, mas decide calar-se ao imaginar a cara que poria a sua mãe se lhe explicasse a presunção de que talvez, se se propuser a isso, às nove já não terá febre. Além disso, não tem vontade nenhuma de falar. Está realmente muito cansado. A mãe, quando acaba de pôr-lhe as compressas na testa – que o fazem tremer – diz-lhe, enquanto apaga a lâmpada, que ficará melhor com a luz apagada. O menino adormece em seguida, numa nuvem de calor cheia de vidros quebrados.
Volta a acordar às dez menos um quarto. Um dos raios de sol que lhe chegam entre as ripas da persiana ilumina o despertador. A sua mãe terá ligado já para a escola? Que vergonha, se se esqueceu e o esperaram – todos: professores e alunos – um tempo prudencial, até se decidirem eles a telefonar para sua casa – mas o telefone não tocou, pois não? – e tomar conhecimento de que está doente. Mas não: agasalhado pela febre, vê-os claramente no autocarro, pela auto-estrada, meia hora depois de ter saído da cidade, cantando, rindo, brigando. Vê Victor contando as heroicidades que conta sempre e em que já ninguém acredita. Vê Ivo comendo a merenda antes de tempo; o motorista pedindo silêncio; o professor Santos repetindo, com atitude mais enérgica, as demandas do condutor; Carlos lutando com Inácio; Belmiro e Gabriel troçando do professor Santos. Vê tudo com tanta clareza que, não fosse acrescentarem-se detalhes e variantes que no ano anterior não se produziram, julgaria que a única coisa que faz é recordar a excursão anterior. Mas não: o ano passado ele sentava-se, precisamente, ao lado de Belmiro, e Gabriel sentava-se com Cristóvão, e Inácio não ia e agora, por outro lado, vê-o como se estivesse diante dele. Vê como empurra Carlos pelas costas, e logo dissimula; vê Belmiro – talvez para celebrar ser um dia de festa, ele que habitualmente é tão medroso – juntar-se à batalha; vê como Victor – como sempre, com ar de querer ser quem manda – tenta manter a ordem, sem que ninguém lhe faça caso; vê como o professor Santos volta a cabeça; vê como o motorista se volta também, pedindo silêncio; vê a curva mais à esquerda de onde teria que estar; vê o grito de cinquenta e duas vozes; vê a cara de terror do professor Santos. E ele próprio fecha os olhos, horrorizado, sem tempo de pensar que mais lhe teria valido não dissimular a febre e ter ficado na cama aquela manhã.

Escrito por Rui Herbon in Jugular 21 de Setembro de 2010
 

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