segunda-feira, 15 de junho de 2009

O melhor da semana 24


Há pessoas assim. Pegam num assunto que para a maioria dos mortais é insignificante e fazem dele um texto que não conseguimos parar de ler! Esta menina é um caso desses.
Como invejo essas pessoas.

Este post foi publicado no dia 11de Junho. Pela facilidade e brilhantismo do discurso outra classificação não poderiamos dar: Excelente!

Aconselhamos que leiam também todos os outros post. São, sem excepção, brilhantes.



Viver a Sicília

Demorei a conseguir encaixar o cinto de segurança. O senhor lançava-me um olhar admirado, ignorando com grande naturalidade a estrada à sua frente. Pude ler na sua expressão que perguntava a si mesmo “ma che cazzo fai?”. Há muito que os cintos daquele carro não deviam ser utilizados. Na altura, pensei que a minha dificuldade se devesse à euforia que me fazia tremer por todo o lado. Apanhar boleia de um siciliano de gema seria uma experiência para relembrar, contar e recontar, eu sabia-o. E, assim que pude olhar à minha volta, confirmei-o.
Era um automóvel que nunca, desde a sua concepção, havia sido limpo. Aparentava mesmo ter sido sujo propositadamente, porque involuntariamente ninguém conseguiria tal. Misturava-se terra com pó, latas, folhas e revistas velhas.
Não era também propriamente um automóvel, mas antes o que restava dele. Retrovisores, nem vê-los. O vidro da frente ameaçava cair a qualquer momento, em virtude de todas as rachadelas que o compunham. Mais quatro pessoas dentro do automóvel parecia uma séria ameaça à sua frágil estrutura.
Ao meu lado, no lugar do condutor, estava o siciliano com um aspecto igualmente sujo, barba por fazer, cotovelo apoiado na porta, e barriga volumosa, apertada entre o banco e o volante. Realmente ele não precisava de cinto de segurança. “Perfeito!”, pensei feliz, com um grande sorriso incontrolável, por não ter defraudado as minhas expectativas de como seria o senhor que pararia para nos dar boleia.
Eu queria saber tudo sobre o senhor. O que é que ele fazia, de onde vinha, onde morava, se era de esquerda ou de direita, o que é que ele achava do Berlusconi. Mas a pergunta que eu queria mesmo mesmo fazer era se ele conhecia mafiosos. Talvez me saísse a sorte grande e ele fosse um deles!
Ele era de conversa fácil, como todos os sicilianos e, rapidamente, tomou as rédeas ao diálogo. A viagem prosseguiu aos s’s por entre buzinadelas, insultos dados e recebidos e travagens bruscas que nos faziam temer pela nossa vida. Logo acalmei a euforia e esqueci a enxurrada de perguntas, fixando os olhos na estrada, agarrada ao banco.
Ele percebia o medo que exalava de nós e de vez em quando faziam-se silêncios pesados que logo quebrava dizendo “ Não se preocupem! Eu é que estava distraído com a conversa! Peço desculpa por vos ter assustado!”. Era tão simpático, o senhor que quase nos matou... E prosseguia a conversa. Explicou-nos que só não ia passear connosco porque tinha acabado de sair do trabalho e a esposa estava à espera para jantar.
Quando terminamos o percurso, estávamos os cinco vivos, dos quais quatro banhados em suor e pálidos de medo. Apercebi-me que não perguntei nada do que queria saber e repreendi-me a mim mesma. Relembrei então o que senhor tinha contado e que na altura não tive capacidade para apreender, porque a energia despendida a agarrar o banco não podia de forma alguma ser veiculada para o aparelho auditivo. O senhor, segundo nos disse, nunca havia saído de Itália mas também não queria. Era muito feliz assim. Para que havia de sair? Além disso, todos vinham ali ter à ilha: ingleses, espanhóis, franceses, alemães, portugueses...
Com as pernas ainda a tremer, enquanto ouvia os gritos e música de uma manifestação comunista e, ao mesmo tempo, se assomava à minha frente a Piazza del Duomo de Catânia, partilhei da sensação do senhor: Itália chega-nos para uma vida inteira.

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