Pedofilia, uma “atividade” milenar.
Durante séculos não só aceite como – nalgumas civilizações –
considerada nobre.
Hoje é crime.
Excerto da crónica de António Lobo
Antunes - o melhor escritor do mundo - na revista Visão:
«O Pilinhas
Quando acabei a
instrução primária (…) os meus pais matricularam-me no Camões
onde encontrei dois mestres inesquecíveis. O professor de
Matemática, de alcunha Bolinhas (…) [e] uma segunda criatura que
não era tão estúpida, era apenas um criminoso, conhecido pelo
epíteto de Pilinhas. Esse não se ocupava de Matemática, ocupava-se
da Religião e Moral, e sofri-lhe as aulas durante os dois primeiros
anos. Chamavam-lhe Pilinhas porque repetia, vezes sem conta, a mesma
frase:
– Só se pode mexer na pilinha para cinco
coisas: fazer chichi, lavar, ajeitar, coçar mas não muito e pôr
remédio.
Ao contrário dos outros professores de Moral não
era padre: era médico, era careca (por acaso o Bolinhas também)
fazia-nos festas e, por amor a Deus, nunca casou. Dava as aulas
inteiras sentado atrás da secretária (as secretárias do Camões
eram fechadas, quer dizer havia um espaço para as pernas e tudo o
resto era madeira) e ia-nos introduzindo, em voz baixa e suave, na
intimidade com o Divino, Mandamentos, Inimigos Do Homem, que são
três, Mundo, Demónio e Carne e, a propósito da Carne, lá vinham
as cinco coisas acerca da pilinha, cuja relação com a Carne (ele
não explicava que espécie de carne, eu achava que rosbife) eu não
entendia muito bem.
(…)
O Pilinhas, enquanto
nos instruía acerca dos difíceis caminhos da Fé, começou a chamar
um de nós para sentar-se ao seu lado, durante as aulas, atrás da
dita secretária fechada, talvez, pensava eu, porque a proximidade
mestre-discípulo por um lado premeia os bons alunos, por outro
permite ao professor tomar melhor o pulso à temperatura pedagógica
da turma através das reações, sentidas de perto pelo mestre, das
nossas inocentes almas infantis. Só achava esquisitas as caras dos
meus colegas no fim das aulas mas atribuía isso ao maravilhamento da
honra de estar cinquenta minutos no estrado, diante da turma, numa
posição de privilégio. Até que uma manhã ouvi o Pilinhas
chamar-me
– Antunes
e dilatei-me de orgulho na carteira porque o
privilégio ia, finalmente, pertencer-me. Ao
– Antunes
e eu era o único Antunes ali, seguiu-se um
– Chega aqui, Antunes
mavioso e risonho e viajei até ele num orgulho
infinito, sentando-me na cadeira ao lado da sua, em cujo tampo o
Pilinhas batia uma palma convidativa.
(…)
De quando em quando os
dedos do Pilinhas roçavam-me o cotovelo e acabaram por ancorar nos
meus joelhos, acariciando-me de leve ao início, cada vez com mais
força depois, subindo- -me as coxas em beliscões simpáticos,
avaliando-me a textura da pele, encontrando-me o elástico das
cuecas, tudo isto enquanto dissertava acerca do Espírito Santo e me
alcançava subtilmente o a seguir ao elástico, procurando, em
movimentos convulsos, aquilo em que só se podia mexer para cinco
coisas e tentando juntar-lhe uma sexta. A certa altura convidou a
turma a ler os Mandamentos em voz alta e, aí pelo terceiro ou
quarto, inclinou-se para mim numa expressão que nunca esquecerei,
parecida com a do camaleão da minha tia Graça, que morava numa
gaiola na cozinha, antes da boca expulsar uma compridíssima língua
instantânea que filava uma mosca desprevenida, enquanto o Pilinhas,
de lábios quase colados à minha orelha, perguntava num cicio que me
horrorizou, enquanto me apertava com langor as cuecas que a minha mãe
adaptava do meu pai para mim:
– Já tens leitinho aí?
pergunta que me deixou atónito: quem tinha leite
era a minha mãe, que amamentava os meus irmãos que sucessivamente
iam nascendo, de mim a única coisa que saía era chichi e, portanto,
cheguei a casa confusíssimo. O meu pai estava, como de costume, no
escritório, de olho no microscópio, e levei que tempos a ganhar
coragem para lhe falar. Via-lhe apenas as costas e não era capaz até
que, sem conseguir aguentar-me mais, me saiu sei lá de onde a
pergunta aflita
– Ó pai eu tenho leite?
O resto foi simples e rápido, não demora muito a
contar. O meu pai ficou imóvel até olhar para mim numa expressão
de estranheza:
– O quê?
Repeti embaraçadíssimo
– Já tenho leite?
o meu pai, franzido
– Que história é essa?
eu
– O professor de Moral perguntou-me se eu tinha
leite neste sítio
a apontar-lho enquanto o meu pai
– Repete lá essa história
eu
– O professor de Moral perguntou-me se eu tinha
leite neste sítio e convidou-me para em lugar de almoçar no Camões
almoçar em casa dele
e depois vi o meu pai de pé, e depois vi o meu
pai a vestir o casaco numa velocidade impensável, e depois vi o meu
pai sair a correr, e depois vi o meu pai, da janela, entrar no carro,
e depois vi-o chegar uma ou duas horas depois, e depois ficámos sem
lições de Moral durante um mês. Um dos contínuos informou-nos que
o professor estava doente. O meu pai nunca foi para graças.
Lembro-me que nesse dia jantou em silêncio. Quer dizer não bem em
silêncio porque entre o prato e a sobremesa
(o meu lugar ficava à sua direita)
(o meu lugar ficava à sua direita)
o ouvi murmurar
– Filho da puta
e não tornou a abrir a boca. Teria trinta e
poucos anos nessa altura, não dizia palavrões e foi o único que
alguma vez lhe escutei. E é tudo quanto conheço acerca desse
assunto.»
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