segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Os sem palavras




Para ler e meditar. Crónica (excerto) de Helena Matos publicado em Observador a 13/01/2019:
«Primeiro os velhos tornaram-se idosos. E um dia, não se consegue já precisar qual, os cegos passaram a invisuais e o morrer tornou-se partir.
O chumbo ou reprovação transformou-se em retenção.
Os gordos passaram a obesos.
Os trabalhadores deram lugar aos colaboradores. Os despedidos a dispensados.
O sexo passou a género.
Os maridos e mulheres deram lugar ao assexuado cônjuge ou, como recomenda a União Europeia, a parceiro/parceira.
Os homens e mulheres são agora indistintamente pessoas.
Os homossexuais tornaram-se gays.
Mas eis que se constatou que tal exercício de busca de sinónimos não era suficiente. Foi aí que chegaram as perífrases ou seja esse bizarro falar por rodeios. E assim os idosos que já não eram velhos passaram a terceira idade. As prostitutas tornaram-se trabalhadoras do sexo.
Os invisuais a quem já não se podia chamar cegos deram lugar às pessoas portadoras de deficiência.
As empresas deixaram de falir e passaram a estar em reestruturação de serviços.
Os trabalhadores despedidos que entretanto tinham passado a colaboradores dispensados começaram a ser designados como elementos cuja colaboração cessou.
As coisas mais simples passaram a ter de ser referidas por sequências de palavras frequentemente sem sentido. As categorias profissionais tornaram-se uma espécie de cabides em que se acumulam palavras como quem pendura casacos: as hospedeiras deram lugar às assistentes de bordo e as funcionárias das escolas tornaram-se auxiliares de ação educativa.
Neste zelo de uma linguagem livre dos pecados do machismo, racismo, homofobia… as expressões aplaudidas num determinado momento logo se revelam desadequadas. E assim, os velhos depois de terem sido idosos e terceira idade tornaram-se seniores.
Os pretos que tinham passado a negros e em seguida a pessoas de cor são agora referidos como africanos. E para não ser acusado de discriminação de género o “Ladies and gentlemen” passou a “Hello, everyone”.
Tornámo-nos uma sociedade em que nada é dito diretamente. Falamos por rodeios. Somos os perifrásticos. Agarramo-nos a expressões neutras como sinal da nossa tolerância; por todo o país empresas e organismos oficiais produzem documentação recomendando que se recorra à linguagem neutra para “promover a igualdade entre homens e mulheres”.
Compomos frases enormes para não termos de dizer o óbvio. Recorremos ao eufemismo para mascarar a realidade. Temos medo das palavras. Usamo-las com mil cuidados não vão elas revelar o que de facto pensamos e não a forma como devemos ver o mundo.»

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